sexta-feira, 16 de julho de 2010

OPINIÕES DE ROBINSON

(Carlos Drummond de Andrade)

Robinson aproximou-se cautelosamente. Percebia-se que era um homem disposto a defender sua ilha deserta.

__ Naturalmente o senhor veio aqui para entrevistar-me. Quer conhecer minhas opiniões sobre o mundo do pós-guerra, a maneira de domesticar os alemães, a possibilidade de dar comida a toda a gente e outras utopias. Mas eu sou um homem sem opiniões. Tenho apenas meu machado e minha cabana. Entende?

__ Não, velho Robinson. Não vim perguntar-lhe nenhuma coisa. Apenas, cuidou-se de dedicar à literatura infantil o número de uma revista e eu me lembrei de procurá-lo, a você personagem típico dos livros infantis, para ouvi-lo discorrer sobre matéria tão complexa.

__ Não sou personagem de histórias infantis. Minha história não foi escrita para crianças.

__ Precisamente por isso escolhi você, meu caro amigo. Como se explica o fato de um livro escrito para adultos atingir a zona difícil das crianças e passar a ser considerado um livro feito para elas, e até mais compreendido por elas do que pela gente grande?

Robinson coçou a barba de uma exuberância vegetal. Mostrava-se embaraçado, mas estava antes envaidecido.

__ Então no Brasil também?...

__ Também no Brasil, pois não. A princípio nas velhas e ingênuas séries de quadros coloridos do Tico Tico a sua aventura foi contada às crianças brasileiras.(Chorei minha lágrima na semana em que você deixou a ilha) Depois vieram outras adaptações e resumos, antecipando a técnica moderna da condensação. Por último você foi apresentado aos nossos garotos pelo escritor Monteiro Lobato, um dos homens que mais fizeram pelas crianças brasileiras, contando-lhes histórias entre fantásticas e realistas, em que lhes ensinava de maneira pitoresca a ciência, a história, a geografia, os fenômenos da natureza.

__ Cortaram muito das minhas peripécias?

__ Muito. Mas era preciso, e todo o escritor já está habituado a essa operação. O essencial é que o personagem ficasse. E o personagem está vivo. Fizeram o mesmo com o Quixote.

__ Este cavalheiro é diferente – interrompeu Robinson agastado.__ Nada temos em comum. Trata-se de um sonhador, um lunático, ao passo que eu sempre fui um honrado comerciante (talvez mais comerciante que honrado) e sobretudo um espírito prático. Minha longa permanência na ilha que cultivei e colonizei não é uma aventura romântica. Não perdi o meu tempo construindo uma torre, mas aproveitei-o fazendo uma cabana fortificada; e não escrevi versos à maneira dos jovens poetas puros, em matéria de escrita, limitava-me a dar talhos na madeira, para indicar os dias e controlar a passagem do tempo. Enfim, minha vida pode ser tida como exemplo de força prática, laboriosa e construtiva, nela se fundem capacidade inventiva, força de vontade e poder de adaptação.

__ Já sei prezado Robinson, e desculpe se lembrei à toa o nome de um ser tão diferente como o Quixote. O certo é que os meninos gostam de você, homem de vista curta e segura (isto não é xingamento), como o do fidalgo manchego que era a própria imaginação desenfreada. Meninos gostam de tudo e o apetite infantil em matéria de histórias e caracteres vai ao infinito.

__ Além do meu “caso” que é que eles lêem ultimamente por lá?

__ Tudo. E muitos lêem Robinson sem o saberem. Porque você tem mil nomes, fique ciente disto. Os escritores e desenhistas norte-americanos não pecam pelo excesso de espírito criador, e muitas vezes, com feições e rótulos diversos, fazem de você ou de outros personagens clássicos o objeto de suas histórias aparentemente novas. Essas histórias, como tantas outras mercadorias padronizadas, são despachadas para o mundo inteiro e aparecem simultaneamente nos jornais e revistas de toda a parte. Sua receita de viver numa ilha deserta tem sido muito explorada.

__ Sei disso. Recebo as Seleções e ouço o aviso aos navegantes... Hoje em dia, isso de ilha deserta é conversa fiada.

__É mesmo, velho Robinson e as crianças também o sabem. As crianças envelheceram terrivelmente nos últimos tempos. O cinema lhes trouxe uma soma brutal de conhecimentos. O rádio também. Já não falo das crianças dos países onde se desenvolvem operações militares – essas aprenderam demais. Refiro-me às crianças dos países não invadidos, nem bombardeados, das crianças mais felizes e protegidas. Amadureceram muito. Há mesmo quem receie que os contos maravilhosos já não seduzam os meninos mais tenros, a menos que esses contos também se renovem e, por exemplo, exibam uma moralidade mais direta e cortante. Na opinião dessas pessoas, as fábulas estão desmoralizadas. A figura do lobo não interessa; um fascista impressiona muito mais. E as fadas teriam perdido o prestígio, depois que surgiram os pára-quedistas.

__ Afinal, o senhor está entrevistando ou sendo entrevistado? – estranhou Robinson.

__ Tem razão. Vim aqui para pedir-lhe que me ajude a compreender o mistério da leitura – ou um aspecto dele. As crianças lêem histórias para gente grande. Os homens lêem contos de Andersen e Perrault. Um conto como “O príncipe feliz” de Oscar Wilde, não se sabe se foi composto para homens ou crianças – todos o adoram. Que é, afinal, literatura infantil?

__ Meu filho – respondeu Robinson gravemente, depois de um minuto de reflexão. __ O problema é estranho a minhas cogitações habituais, mas é possível examiná-lo à luz da natureza humana. A literatura infantil é talvez uma invenção dos livreiros. Quem sabe?

__ Mas os especialistas...

__ Deixe em paz os especialistas. Não é fora da história do comércio ou da sociedade que um gosto ou uma tendência sejam impostos pelo produtor. O uso da gravata nos países ocidentais talvez não tenha outra explicação senão a de que foi estabelecido pelos fabricantes de gravatas. Literatura é uma só, e não parece razoável que se divida em seções correspondentes às fases do crescimento físico e mental do homem.

__ Entretanto – arrisquei – certa maneira de contar...

__ Dirige-se de preferência ao público infantil, não é? Mas essa maneira não basta para constituir uma nova forma de literatura, nem mesmo um novo gênero. Dentro da “literatura adulta”, se é que vocês a chamam assim, cabem todas as maneiras, formas e gêneros. E a redução microscópica de um gênero é ainda um gênero. “Infantil”, geralmente é o autor da história em si. O que há de gravidade e consciência das coisas no espírito da criança escapa, geralmente, a esses escritores especializados em livros para crianças. Como se a criança fosse um ser à parte, que se transforme visceralmente ao crescer.

E o homem positivo continuou:

__ Não há escritores para homens e escritores para meninos. Há somente bons e maus escritores. Dentro da categoria dos bons uns são particularmente dotados para a representação de pessoas, coisas e fatos, reais ou imaginários. Esses criarão histórias e personagens que darão a volta ao mundo, fascinarão velhos e moços, mulheres e homens, de todas as profissões, e serão sempre vivos. Não têm a preocupação de uma clientela, de uma classe ou de uma zona de influência. São os escritores propriamente ditos. Os outros são os ruins – não interessam.

E depois:

__ Afinal, e sumariamente, a chamada literatura infantil tem seu principal celeiro no folclore. Mas, não é o folclore universal um fornecedor de motivos para toda a literatura? O folclore, simplesmente, seria insuficiente para individualizar essa pretensa literatura pré-púbere. Outro elemento de caracterização seria o seu duplo objetivo de recreação e educação (não falo de propaganda, que já é um desvio).Ora, aqueles são objetivos que podem coincidir com os da leitura. É preciso divertir as crianças, como também é preciso ensinar-lhes matemática elementar, mas não vejo em que isto envolva preocupação literária, como não há literatura no ato de cantar para que o filho adormeça ou no de substituir-lhe os cueiros molhados...

__ Mas há vida, Robinson ilustre, há vida!

__ E a vida não é uma só, sem embargo das diferenças biológicas?

Fugi. Seria Robinson um conferencista recalcado?

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