sexta-feira, 16 de julho de 2010

recomendando Textos - Valores civilizatórios afro-brasileiros na Educação Infantil

Azoilda Loretto da Trindade(1)

A criança gozará de proteção contra atos que possam suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência de que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de seus semelhantes. (Adotada pela Assembléia das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1959(2))

Este texto, que se propõe a falar sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros na Educação Infantil, tem como ponto de partida e está ancorado no princípio acima referido. Propõe um diálogo em aberto, que precisa ter continuidade no trabalho de cada professor, propondo um compartilhar idéias, no sentido amplo, com aqueles que fazem o cotidiano escolar. Cotidiano este entendido como vibrante, como lugar de desafios, inquietações, movimento, encontros e desencontros, alegrias, emoções, prazeres, desprazeres, produção de saberes, de conhecimentos e de múltiplos fazeres. Espaço de pessoas buscantes, pesquisadoras da sua própria prática.

Apresentamos, de início, algumas explicações, antes de darmos continuidade a este diálogo:

1ª) Ao destacarmos a expressão “valores civilizatórios afro-brasileiros”, temos a intenção de destacar a África, na sua diversidade, e que os africanos e africanas trazidos ou vindos para o Brasil e seus e suas descendentes brasileiras implantaram, marcaram, instituíram valores civilizatórios neste país de dimensões continentais, que é o Brasil. Valores inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração. Queremos destacar que, na perspectiva civilizatória, somos, de certa forma ou de certas formas, afrodescendentes. E, em especial, somos o segundo país do mundo em população negra.

A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores civilizatórios ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem num processo histórico, social e cultural. E apesar do racismo, das injustiças e desigualdades sociais, essa população afrodescendente sempre afirmou a vida e, conseqüentemente, constitui o/s modo/os de sermos brasileiros e brasileiras(3).

2ª) Sobre a África, é bom destacar que é um imenso continente, com 52 países, com uma imensa e variada diversidade: política, econômica, social, cultural... E que, assim como podemos dizer que existem vários brasis no Brasil, existem várias áfricas na mãe África.

Fonte: www.paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa

3ª) Sempre cremos que é interessante falar do cotidiano para fazer formulações. Recentemente, ouvi uma senhora reclamando que um dia na sua vida foi discriminada por ser branca e isso a indignou. Afinal, como e por que discriminá-la? Alias, muitas pessoas argumentam, baseadas em um único exemplo da sua existência, o fato de elas serem discriminadas, sobretudo quando a discriminação vem da parte daqueles que são, em geral, os mais discriminados. Outras pessoas destacam outras formas de discriminação, como que para amenizar a afirmação do racismo e a discriminação, histórica e atual, sofrida pelos negros e negras. Referem-se ao fato de que alguém pode ser discriminado por ser gordo, por ser pobre, por ser feio, por ser muito bonito, por ser, ou não, inteligente... E por aí vai.

Uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada ao ser discriminada, sofre, se revolta, fica furiosa, deprimida... Enfim, tem várias reações. Agora, imaginemos um ser humano negro de 0 a 6 anos de idade, uma criança negra que é, numa sociedade racista, discriminada 24 horas por dia e, muitas vezes, com o silêncio omisso dos adultos, da professora.

Essa criança tem que se sustentar sozinha nestas situações. Infelizmente, ainda há muita insensibilidade para com as crianças negras. Estas, ao serem discriminadas, ficam acuadas, envergonhadas, inibidas em denunciar. Se essa é uma experiência muito confusa para uma pessoa adulta, imaginemos para um ser humano de pouca idade, uma criança de 0 a 6 anos. Professores e professoras, acreditem, a criança pode não saber expressar oralmente a discriminação, mas ela sente, sofre, seu corpo fica marcado, com a discriminação e com a omissão, com o silêncio conivente, com a falta de acolhida do adulto que ela tem como referência no momento.
Não é apenas motivo de negligência a discriminação, o preconceito, o racismo com relação às crianças negras. É também uma insensibilidade, que está ancorada nos 312 anos oficiais de escravidão neste país e nos 117 anos de promulgação da Lei Áurea. É impressionante que, por muito tempo, ninguém se preocupou com a importância de colocar, no acervo de brinquedos das crianças da Educação Infantil, bonecas e bonecos negros, livros infantis com imagens e personagens negros em posição de destaque, não ter mural com personagens negros, não serem trabalhadas as lendas, as histórias e a História africanas, entre outras formas de afirmação de existência e de valorização dos negros em nosso país. É, essa insensibilidade está inscrita na nossa memória coletiva de brasileiros e brasileiras, que vendiam crianças negras, que abusavam das crianças negras, que matavam crianças negras, que impediam que as crianças negras fossem amamentadas por suas mães. A história parece que nos legou uma responsabilidade social especial para com essas crianças. Especial, pois temos que ter responsabilidade social para com todas.

Para ilustrar que, para a cultura iorubá, todas as pessoas são divinas, traremos, um conto(4) que é emblemático do valor civilizatório afro-brasileiro de aceitação das diferenças humanas:

(...) Olodumaré, que é um deus ioruba, quis criar a Terra e deu um punhado dela, num saquinho, para Obatalá ir criá-la. Antes de ir, Obatalá teria que fazer a oferenda a Exu(5), pois sem movimento não há ação. Obatalá, que é muito velho, esqueceu e foi andando, andando devagarinho, e no caminho sentiu sede. Então viu uma árvore, dessas que têm água dentro, e parou, abriu a planta e bebeu. Só que era uma bebida que dava um pouco de tontura, e então ele se deitou debaixo da árvore e acabou dormindo.


Enquanto isso, Odudua, que também queria criar a Terra, fez as oferendas a Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dormir, achou que ele iria se atrasar muito, pegou o saquinho e foi ele mesmo criar a Terra. E criou.
Obatalá acordou e viu a Terra criada, e foi reclamar para Olodumaré, que enviou e deu a ele barro, para que criasse os homens na Terra. Obatalá foi e criou os homens, mas de vez em quando tomava a bebida da árvore de que tinha gostado, e ... não chegava a dormir, mas, meio tonto, fazia uns seres humanos meio tortinhos.

Tecendo fazeres e saberes afro-brasileiros na Educação Infantil

“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas graças, de um pássaro e sua árvore.” Manoel de Barros. In: Memórias Inventadas. A Infância.

Vamos agora, pinçar alguns aspectos afro-brasileiros que consideramos caros à Educação Infantil. Alguns, pois há uma infinidade deles:

Principio do Axé ENERGIA VITAL - tudo que é vivo e que existe, tem axé, tem energia vital: Planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo, tudo é sagrado e está em interação. Imaginem se nosso olhar sobre nossas crianças de Educação Infantil forem carregados da certeza de que elas são sagradas, divinas, cheias de vida.

Podemos trabalhar a potencialização deste princípio nas nossas crianças, se nosso olhar, nosso coração, nosso corpo senti-las verdadeiramente assim.

Elogios, um afago, brincadeiras de faz-de-conta, nas quais elas se sintam a mais bela estrela do mundo, a mais bela flor, alguém que cuida, alguém que é cuidado. Um espelho para que elas se admirem, para que brinquem com o espelho, e se habituem a se olhar e a serem olhadas com carinho e respeito.

ORALIDADE – Muitas vezes preferimos ouvir uma história que lê-la, preferimos falar que escrever... Nossa expressão oral, nossa fala é carregada de sentido, de marcas de nossa existência. Faça de cada um dos seus alunos e alunas contadores de histórias, compartilhadores de saberes, memórias, desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir podem ser libertadores.

Promova momentos em que a história, a música, a lenda, as parlendas, o conto, os fatos do cotidiano possam ser ditos e reditos. Potencialize a expressão “fale menino, fale menina”.

CIRCULARIDADE – a roda tem um significado muito grande, é um valor civilizatório afro-brasileiro, pois aponta para o movimento, a circularidade, a renovação, o processo, a coletividade: roda de samba, de capoeira, as histórias ao redor da fogueira...

Já fazemos as tradicionais rodinhas na Educação Infantil, e nas reuniões pedagógicas, nas reuniões dos responsáveis. Que tal potencializarmos mais a roda, com cirandas, brincadeiras de roda e outras brincadeiras circulares?

CORPOREIDADE – o corpo é muito importante, na medida em que com ele vivemos, existimos, somos no mundo. Um povo que foi arrancado da África e trazido para o Brasil só com seu corpo, aprendeu a valorizá-lo como um patrimônio muito importante. Neste sentido, como educadores e educadoras de Educação Infantil, precisamos valorizar nossos corpos e os corpos dos nossos alunas, não como algo narcísico, mas como possibilidade de trocas, encontros. Valorizar os nossos corpos e os de nossas crianças como possibilidades de construções, produções de saberes e conhecimentos coletivizados, compartilhados.

Cuidar do corpo, aprender a massageá-lo, tocá-lo, senti-lo, respeitá-lo é um dos nossos desafios no trabalho pedagógico com a Educação Infantil. Dançar, brincar, rolar, pular, tocar, observar, cheirar, comer, beber, escutar com consciência. Aparentemente nada de novo, se não fosse o desmonte de corpos idealizados e a aceitação dos corpos concretos

MUSICALIDADE – A música é um dos aspectos afro-brasileiros mais emblemáticos. Um povo que não vive sem dançar, sem cantar, sem sorrir e que constitui a brasilidade com a marca do gosto pelo som, pelo batuque, pela música, pela dança.

Portanto, mãos à obra, som na caixa e muita música, muito som, mas não os “enlatados”, as músicas estereotipadas, o mesmismo que vemos na TV e em quase todas os momentos da escola, nos quais a música se faz presente. Vamos ouvir músicas que falem da nossa cultura, que desenvolvam nossos sentidos, nosso gosto para a música e, com isso, não produzirmos alienados musicais desde a tenra idade. Nosso país é riquíssimo em ritmos musicais e em danças, que tal investirmos neste caminho? Conhecer para promover.

LUDICIDADE – A ludicidade, a alegria, o gosto pelo riso pela diversão, a celebração da vida. Se não fôssemos um povo que afirma cotidianamente a vida, um povo que quer e deseja viver, estaríamos mortos, mortos em vida, sem cultura, sem manifestações culturais genuínas, sem axé.

Portanto, brinquemos na Educação Infantil, muita brincadeira, muito brilho no olho, muito riso, muita celebração da vida.

COOPERATIVIDADE – A cultura negra, a cultura afro-brasileira, é cultura do plural, do coletivo, da cooperação. Não sobreviveríamos se não tivéssemos a capacidade da cooperação, do compartilhar, de se ocupar com o outro.

Como dissemos, este texto é um compartilhar idéias e contamos com seu retorno6 com opiniões, sugestões, críticas, complementações, ponderações, em nome de um verdadeiro e profundo amor pelas nossas crianças brasileiras, que merecem ter acesso a um patrimônio cultural que as constitui como brasileiras, que é o patrimônio cultural afro-brasileiro.

Muito axé.

Bibliografia

BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.

CAVALLEIRO, Eliane (org.). Racismo e Anti-Racismo na Educação-Repensando nossa Escola. São Paulo: Summus, 2001.

_________________. Do silêncio do lar ao silêncio escolar. São Paulo: Contexto, 2000.


NEN- NÚCLEO DE ESTUDOS NEGROS. Negros e Currículo. Série Pensamento Negro em Educação. Florianópolis: Editora Atilènde, 2002.


SODRÉ, Muniz. Claro e Escuros – identidade, Povo e Mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.



______. A Verdade Seduzida. Por um conceito de Cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983.



TRINDADE, Azoilda Loretto e SANTOS, Rafael (org.). Multiculturalismo – mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.



______. Racismo no Cotidiano Escolar. Rio de Janeiro: FGV/IESAE, 1994. Dissertação de Mestrado em Educação.



Literatura Infantil Literatura Infantil



• Ana e Ana - Célia Godoy – Difusão Cultural do Livro.

• Agbalá, um lugar-continente – Marilda Castanha – Editora Formato.

• A menina que tinha o céu na boca – Júlio Emílio Braz – Difusão Cultural do Livro.

• A semente que veio da África – Heloísa Pires Lima – Salamandra.

• A ovelha negra – Bernardo Aibê – Ed. Ioni Meloni Naif.

• As tranças de Bintou – Sylviane A. Diouf – Cosac e Naify.

• Berimbau – Raquel Coelho – Editora Ática.

• Bruna e a Galinha D’ Angola - Gercilda de Almeida – Editora Pallas

• Como as histórias se espalharam pelo mundo – Rogério Andrade Barbosa – Editora Difusão Cultural do Livro.

• Duula, a mulher canibal – Rogério Andrade Barbosa – Ed. Difusão Cultural do Livro.

• Gosto de África – Histórias de lá e de cá – Joel Rufino dos Santos – Editora Onda Livre.

• Histórias Africanas para contar e recontar - Rogério A. Barbosa – Ed. do Brasil.

• Histórias da Preta – Heloísa Pires Lima – Editora Companhia das Letrinhas.

• Ifá, o adivinho – Reginaldo Prandi- Companhia das Letrinhas.

• Lendas Negras – Júlio Emílio Braz – Editora FTD.

• Menina bonita do laço de fita – Ana Maria Machado - Editora Ática.

• O amigo do rei – Ruth Rocha – Editora Ática.

• O espelho dourado – Heloísa Pires Lima – Peirópolis.

• O filho do vento – Rogério Andrade Barbosa – Ed. Difusão Cultural do Livro.

• O menino marrom – Ziraldo – Ed. Melhoramentos.

• O menino Nito – Sonia Rosa – Editora Pallas.

• Os reizinhos de Congo – Edimilson de Almeida Pereira – Ed. Paulinas.

• Que mundo maravilhoso! – Julius Lester – Editora Brinque-Book.

• Tanto, tanto! – Tristh Cooke – Editora Ática.

• A cor da ternura – Geni Guimarães – Editora FTD



Notas:

1- Doutora em Comunicação pela UFRJ. Mestre em Educação/IESAE/FGV. Professora universitária,supervisora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. Ativista da luta contra o racismo.

2- http://www.fvt.com.br/declaracaouniversal.htm

3- É bom dizer, para evitar as tradicionais inquietações quando se afirma a africanidade brasileira, que sabemos que somos um país plural, marcado por valores civilizatórios de outros grupos humanos, contudo, este não é o foco deste texto.

4- Recontado por Heloisa Pires Lima em Histórias de Preta. São Paulo, Cia. das Letrinhas, 1998. p. 61.


5- Divindade que simboliza na cosmovisão ioruba, a transformação, a comunicação, os encontros, a contradição, o movimento.

6- azoildaloretto@ig.com.br

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA

WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO

Nenhum comentário:

Postar um comentário